Joaquim Parra Marujo é psicoterapeuta transpessoal, professor universitário, diretor e investigador da Unitranspessoal: Unidade de Investigação-ação de Psicologia Transpessoal e Gerontologia.
No âmbito da Semana do Dia do Pai, convidamo-la a partilhar a sua visão sobre o que é Ser Pai nos dias de hoje, pelo que ele generosamente nos deixou este testemunho:
“Queridíssimo pai,
Perguntaste-me, há pouco tempo, por que razão afirmo ter medo de ti. Como de costume, não soube responder; por um lado, precisamente pelo medo que tenho de ti, por outro, porque, na base deste medo, existem demasiados pormenores para que possa exprimi-los oralmente, de forma mais ou menos lógica. E se neste momento procuro responder-te por escrito será de forma bastante incompleta porque, também por escrito, o medo e as suas consequências me tolham diante de ti e porque, enfim, a importância do assunto ultrapassa, de longe, a minha memória e o meu entendimento. (…). É claro que as coisas podem não se ajustar na realidade como as provas que apresento na minha carta, a vida é mais do que um jogo de paciências; mas com a retificação resultante desta resposta, uma retificação que não posso nem quero prosseguir em detalhe, aproximou-se, em minha opinião, tanto da realidade que poderá proporcionar algum sossego e facilitar, a ambos, a vida e a morte.”
Franz Kafka, Carta ao Pai (Brief an den Vater, 1919)
Na arte, do método sistémico-fenomenológico e na ciência constelativa procura-se, na fase inicial, a “cura” da floresta (a família passada) e, posteriormente, na fase final, curar a árvore que está adoecer e/ou doente (a família atual, a pessoa). Isto é, trabalha-se os níveis instintivos, freudiano, linguístico, cognitivo, existencial e espiritual, ou seja, é um fenómeno sistémico-fenomenológico, existencial, transpessoal e integrativo.
As constelações sistémicas (familiar, organizacional e educacional/pedagógica) não são uma terapia nem uma intervenção psicoterapêutica, mas, simplesmente, uma técnica e um método para o insight de novos caminhos de bem-estar e de felicidades e de integração, no sistema familiar, dos nossos ancestrais e da família atual.
As constelações sistémicas são um método para alcançar metas previamente definidas, isto é, para gerar mudanças no comportamento do adoecer ou do mal-estar de quem pede a constelação (portador do sintoma).
Numa constelação, como método terapêutico, estabelece-se o setting (como cenário holístico-terapêutico) no momento em que os papéis são distribuídos e especificados. É um marco que tem como objetivo a escolha dos papéis dos representantes que foram dados pelo participante (constelante) em que o terapeuta é, puramente, um facilitador dos processos.
O método terapêutico da constelação desenvolve-se, com base na análise sistémico-fenomenológico da narrativa do constelante, sobre o impacto existencial dos problemas/sintomas que afetam a relação consigo próprio, com o outro e com o eco-sistema em que vive, coabita, coexiste e se movimenta. E, é neste caminhar que se abre o caminho para compreender o papel do Pai, num sistema familiar.
Atualmente, ainda, não existe fecundação/conceção (nos seres humanos) sem haver um Pai e uma Mãe.
O fruto (a criança), gerada nesta relação (amorosa ou não), hereditariamente comporta 50% de cada progenitor, assim como, toda uma história transgeracional e psicogeneológica por desvendar.
Para Bert Hellinger “somente na mão do pai a criança ganha um caminho para o mundo” e para que a criança aprenda a caminhar, pé ante pé, terá de interiorizar a seguridade e a representação social do papel masculino do Pai e consciencializar-se da importância do nutrir e do cuidar da mãe, assim como, a aprendizagem do papel do feminino.
Apesar do advento das neossexualidades, a noção de masculinidade e feminilidade são de extrema importância para a criança.
As neossexualidades conflituam nas fronteiras entre o masculino e o feminino, abrindo novos horizontes para as constelações familiares.
Nos tempos atuais, o Pai, assume cada vez mais comportamentos de cuidar e nutrir similares à Mãe e são, cada vez mais, atenciosos e meigos para com as crianças, esbatendo as velhas referências identificadoras.
A grande questão que quero problematizar, quer para a criança, quer no processo constelativo é que a identidade masculina é cultural e socialmente construída. Destarte, pergunto quando perguntar, ainda, não ofende:
- Qual será a fronteira entre o masculino e o feminino e que seja válido para a definição de masculinidade e feminilidade na criança?
- Como será a construção da identidade masculina e feminina da criança?
- Qual o papel do Pai numa relação homossexual masculina e na feminina?
- Numa relação amorosa em que hajam filhos “os meus, os teus e os nossos” como será a imagem de cada pai em cada uma das crianças?
Não tenho dúvidas que, na modernidade, os Homens estão cada vez mais conscientes do seu papel como cuidadores afetuosos, meigos e carinhosos para com os seus filhos e com um empower, na condução da sua família, garantido a construção de uma nova identidade masculina, na sociedade contemporânea, onde os homens, também, podem expressar os seus sentimentos, as suas fraquezas, os seus medos e as suas emoções permitindo-lhes tocar, acariciar, sentir, emocionar e chorar como as mulheres.
A hipervirilidade do Homem do passado onde imperava a audácia, a agressividade, a ousadia, a violência e a coragem esfumou-se e esboroou-se.
Bert Hellinger disse que: “Somente na mão do pai a criança ganha um caminho para o mundo. As mães não podem fazê-lo. O amor dele não é cuidadoso nesta forma como é o amor da mãe. O Pai representa o espírito. Por isso o olhar do pai vai para a amplitude. Enquanto a mãe se move dentro de uma área limitada, o pai nos leva para além desses limites para uma amplitude diferente.”
Por entender, a importância, nas constelações familiares sobre a construção da identidade masculina/feminina quero referenciar Robert Stoller (um dos maiores especialistas sobre a masculinidade e a feminilidade) que estabelece uma relação direta entre identidade de género e identidade sexual arrolando que é:
- Uma energia procedente entre os cromossomos masculinos e femininos (identidade biológica);
- Uma indicação do sexo da criança que, por sua vez, é resultante da observação dos genitais externos (identidade anatómica);
- Uma influência de atitudes dos pais e amigos e a interpretação dessas perceções por parte da criança (processos de socialização);
- Fenômenos bio psíquicos precoces (efeitos pós-natais), causados por padrões de embalar, de sentir e estar com a criança;
- O desenvolvimento do ego, ou seja, qualidades e quantidades de sensações/perceções que a criança interioriza (processo de identificação – uma das propriedades do complexo edipiano).
Uma das funções, do pai, é separar a criança da mãe a partir dos 3 anos de idade para promover o desapego da mãe e criar o sentimento de segurança e de disciplina para que o “fogo” do pai se harmonize com a “terra” da mãe. Isto é, para que o nosso herói, o Pai, nos ensine a caminhar, nos limites do Yin e do Yang, para a construção de uma “forte” personalidade para enfrentar um mundo agreste do poder das masculinidades institucionais. É neste processo que o menino se identificará com a masculinidade Pai e a menina com a feminilidade da Mãe.
Estas duas forças são complementares compondo tudo o que existe para caminhar na trajetória vital. Este equilíbrio, são forças de movimentos e de mudanças para um destino equilibrado entre o Dar e o Receber. Entre estas duas forças, está a vida da criança, para que ela possa respirar e unir-se no amor incondicional dos seus progenitores. Ou seja, a criança caminha, no caminho do meio, para aprender o valor do amor, do carinho, da afeição, da confraternização, da solidariedade, do companheirismo, da fraternidade, da tolerância e da liberdade de ser ELA (a criança interna) dentro de um adulto construtor/edificador de uma nova sociedade.
Quero, também, ressaltar que o pai e a mãe são iguais, com primazias iguais e igualmente grandes. Porém, é no ventre materno, o único lugar, na infinitude do universo cósmico e na finitude do universo terreno, que é asséptico que a criança será gerada (um “ET” que viajará pelo éter transgeracional de milhões de ancestrais) que irá desenvolver-se e, enamorar-se pela sua mãe que, lhe dará a oportunidade de ser alimentado, direi mesmo, nutrido de alimentos diversos como de toque, carinho, ternura, meiguice e o simbolismo da palavra.
Para Bert Hellinger “sem pai, sem vida. Sem pai, sem felicidade”, ou seja, a não-identificação ao Pai leva a criança/adulto a procurar modelos culturais identificativos e agentes de mudança em heróis de “banda desenhada”. Isto é, não somos adultos felizes, independentes e mais “completos” (sadios). É, primordial, valorizar e aceitar o Pai para caminhar para o bem-estar e para a felicidade. Romper com o pai ou com um ancestral é a rutura do sistema familiar para viver nas “trevas” de abandonos, de conflitos profissionais e familiares e o adoecer e a doença será, muitas vezes, um caminho. Para Bert Hellinger “tudo aquilo de que me lamento ou queixo, quero excluir. Tudo aquilo a que aponto um dedo acusador, quero excluir. A toda a pessoa que desperte a minha dor, estou a excluí-la. Cada situação em que me sinta culpado, estou a excluí-la. E desta forma vou ficando cada vez mais empobrecido.
O caminho inverso seria: a tudo de que me queixo, fito e digo: sim, assim aconteceu e integro-o em mim, com todo o desafio que para mim isso representa. E afirmo: irei fazer algo com o que me aconteceu. Seja o que for que me tenha acontecido, tomo-o como a uma fonte de força. É surpreendente o efeito que se pode observar neste âmbito.
Quando integro aquilo que antes tinha rejeitado, ou quando integro aquilo que é doloroso para mim, ou que produz sentimentos de culpa, ou o que quer que me leve a sentir que estou a ser tratado de forma injusta, o que quer que seja… quando tento incorporar tudo isso, nem tudo cabe em mim. Algo fica do lado de fora. Ao consentir plenamente, somente a força é internalizada. Todo o resto fica de fora sem me contaminar. Ao invés, desinfeta, purifica-me. A escória fica de fora, as brasas penetram no coração.”
A fundamental função do Pai, no sistema familiar é apoiar a mãe durante os primeiros anos da criança, para que harmonia familiar contribua para que a criança aceite, igualmente, o Pai e a Mãe. Não aceitar o Pai é abandonar a vida e não aceitar a mãe é a rejeição do seu propósito vivencial. Ou seja, serão adultos sem afetividade e sem a oportunidade de amarem e serem amados.
Quando não amamos (não-aceitamos) o pai, sentiremos o sentimento de abandono e abandonamo-nos a nós mesmos e, quando não amamos a mãe vivemos num vazio existencial de rejeições, de confusões e conflitos com as pessoas que queremos amar.
Aceitar o Pai (amar) é ter o sentimento de realização, no trabalho e o respeito pelas figuras de autoridade. Ao aceitar a Mãe é sentir o sentimento de integração social e perceber o prazer de estarmos inseridos e integrados no mundo onde a prosperidade frutificará em frutos quer económicos, quer familiares, quer culturais, sociais e espirituais.
Antes de sermos concebidos, vivemos no éter do macrocosmo e aí, escolhemos, em primeiro lugar, a terra (o País) onde iremos aterrar e, depois, os nossos pais para com eles conviver e coexistir e sentirmos as feridas emocionais que não resolvemos noutras vidas como: o abandono, a rejeição, a injustiça, a traição, a humilhação, a co-dependência, etc.
A relevância do Pai, no sistema familiar, assenta numa trilogia: a autoridade (disciplina), a ajuda e a maturidade para que a criança se torne adulta. Isto é, no encontro entre o Pai e a Criança, haverá um encontro a dois, “olho no olho. Cara a cara. E quando estiveres perto eu arrancarei os teus olhos. E os colocarei no lugar dos meus. E tu arrancarás os meus olhos. E os colocarás no lugar dos teus. Então, eu te olharei com os teus olhos e tu olharás com os meus” (Jacob Levy Moreno).
Para finalizar um texto de J.J. Neto sobre o Pai e a Carta de Bert Hellinger ao seu Pai.
“um Pai vem do amor, ainda que tenha em sua vida experimentado a dor.
O pai vem do homem, ainda preso na armadura do herói para qualquer situação.
Um pai vem do mundo, e por isso está autorizado a nos mostrar a ele.
Um pai vem de uma infância, e lá guardou algumas de suas melhores e também mais difíceis experiências.
Um pai vem do silêncio, pois sabe que certas coisas pertencem somente a si.
Um pai vem da responsabilidade, pois antes do seu prato tem outros para encher.
Um pai vem da solidão, do seu masculino ainda selvagem e autoritário.
O pai vem da lei, da cultura e do tempo que vive.
O pai é a lei.
O pai vem da vulnerabilidade, que ninguém nota. E assim ele aceita e segue.
O pai vem de seu pai e sua mãe, e como um filho, carrega também as dores de sua pequena criança.
O pai vem da surpresa e do medo.
Ele, um homem bem comum e que viveu tanto, dizendo sim para o que surgiu, nos faz chegar nele.
A nós, como filhos, fica somente a possibilidade de dizer sim a ele. E aceitar os presentes que este ato nos traz”.
A carta de Bert Hellinger (no livro – “As Igrejas e o Seu Deus”) ao seu Pai:
“Dedico este livro a meu pai Albert Hellinger (1895-1967), com uma carta:
Querido papai,
Por muito tempo eu não soube o que me faltava mais intimamente.
Por muito tempo, querido papai, você foi expulso de meu coração.
Por muito tempo você foi um companheiro de caminho para quem eu não olhava, porque fixava meu olhar em algo maior, como me imaginava.
De repente, você voltou a mim, como de muito longe, porque minha mulher Sophie o invocou.
Ela viu você, e você me falou por meio dela.
Quando penso o quanto me coloquei muitas vezes acima de você, quanto medo também eu tinha de você, porque muitas vezes você me batia e me causava dores, e quão longe eu o expulsei de meu coração e tive de expulsá-lo, porque minha mãe se colocava entre nós; somente agora percebo como fiquei vazio e solitário, e como que separado da vida plena.
Porém, agora você voltou, como que de muito longe, para minha vida, de modo amoroso e com distanciamento, sem interferir em minha vida.
Agora começo a entender que foi por você que, dia a dia, nossa sobrevivência era assegurada sem que percebêssemos em nosso íntimo quanto amor você derramava sobre nós, sempre igual, sempre visando o nosso bem-estar e, não obstante, como que excluído de nossos corações
Algumas vezes lhe dissemos como você foi um pai fantástico para nós?
Você foi cercado de solidão e, não obstante, permaneceu solícito e amoroso a serviço de nossa vida e de nosso futuro.
Nós tomávamos isso como algo natural, sem jamais honrar o que isso exigia de você.
Agora me vêm lágrimas, querido papai.
Eu me inclino diante de sua grandeza e tomo você em meu coração.
Tanto tempo você esteve como que excluído do meu coração.
Tão vazio ele estava sem você.
Também agora você permanece amigavelmente a uma certa distância de mim, sem esperar de mim algo que tire algo de sua grandeza e dignidade.
Você permanece o grande como meu pai, e tomo você e tudo que recebi de você, como seu filho querido.
Querido papai,
Seu Toni (assim eu era chamado em casa).”
Joaquim Parra Marujo é também uma das palestrantes do Congresso de Consciência Sistémica, no qual facilitará uma palestra e um workshop imersivo na área temática Povos, Nações e Territórios.